11/03/09

O quadro


Não havia retorno e a calamidade era inevitável.
Ao descer a escada veio-lhe à memória o quadro de Amália e perguntou-se porquê.
Caminhava absorta.
"...No meu comando estou eu. ... cada um comanda o seu próprio navio..."
Entrou na loja, pegou as compras, pagou em dinheiro trocado e saiu sem ver ninguém.
O frio da rua foi uma bofetada.
Apertou o casaco e reparou num céu azul pintalgado de branco.
Subiu a rua sem decidir o destino.
Sentada no banco de jardim disfarçava a urgência
"Que faço eu aqui?!"
Ao menos o pânico de outrora tinha desaparecido.
Talvez a compreensão o tivesse exorcizado.
No cimo da alameda dois idosos cavaqueavam.
Que sonhos, que histórias, que calamidades?
"...E cada um pilota o seu próprio navio..."
... E de novo o quadro de Amália!
"Que tem Amália a ver com isto?!"
As nuvens brincavam ao faz de conta e a urgência voltava.
Os dedos fincavam no rebordo do banco
"Daqui não saio a menos que eu queira!! "
As palavras eram acessórios. Úteis, mas tão frágeis! E o tempo esgotara-se.
No regresso escolheu o caminho mais longo recorrendo ao "olhar pela primeira vez" que fazia interagir com a realidade.
Todo o cenário mudava enquanto a urgência queimava mas não vencia. Não desta vez.
Para lá da porta a urgência sumiu por magia.
Não havia retorno, o tempo esgotara-se.
"No meu comando estou eu. Cada um comanda seu próprio navio"
E fechando os olhos deixou-se arrastar pelo quadro de Amália.

Filó (2009)

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